SAULO RAMOS
PELA TERCEIRA vez, utiliza-se emenda constitucional para prorrogar pagamentos de precatórios, isto é, títulos que representam dívidas públicas resultantes de condenação judicial. O precatório, por si só, já é um calote. Só surge quando o poder público -União, Estados e municípios- deixa de pagar dívidas e obriga credores a recorrer ao Judiciário, que, como todos sabem, é o mais lento paraíso dos devedores em geral.
Essa escandalosa mentalidade brasileira de não pagar o que deve e esperar a condenação judicial foi consagrada pela Constituição, que assegurou a liquidação dos precatórios em ordem cronológica. A regra está no artigo 100.
Com a Constituição de 1988, a Assembleia Constituinte editou uma regra transitória que esticou um pouco mais o dever de pagar as dívidas objeto de condenação judicial. No Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, enfiou o artigo 33, que concedeu oito anos de prazo (oito prestações anuais) para o pagamento dos precatórios que estivessem pendentes na data da promulgação da Carta.
Concedeu-se mais: as entidades devedoras poderiam emitir títulos da dívida pública para pagar aqueles precatórios adiados. Foi uma farra. Alguns Estados e municípios emitiram letras muito acima dos valores dos precatórios e saíram por aí vendendo-as por dinheiro vivo aplicado por alguns investidores incautos, que acreditavam em títulos públicos.
A imoralidade resultou na CPI dos Precatórios, com escandalosos noticiários de TV, rádios e jornais. Alguns espertos governantes das entidades devedoras tiveram a ideia, diante do escândalo, de não pagar até os títulos públicos emitidos para pagamento dos precatórios.Alguns tribunais de justiça estaduais (a letra minúscula é de propósito) anularam os títulos e obrigaram os credores a propor ações ordinárias para cobrarem outra vez os respectivos créditos. Mais 20 anos.
Resumindo a ópera: alguns dos créditos de precatórios vencidos em 1988, adiados por oito anos e transformados em letras dos Tesouros devedores, não foram pagos até hoje.Doze anos depois, o Congresso editou nova emenda constitucional, enfiando, nas disposições transitórias, o artigo 78, que deu aos precatórios, então existentes na fila, mais dez anos para serem pagos em dez prestações suaves e anuais. Teve o cuidado de ressalvar, desse escandaloso benefício, os precatórios do artigo 33 e suas complementações.
Mas desferiu o segundo permissivo de calote por meio de reforma constitucional. Outra disposição constitucional transitória (artigo 86) excluiu os precatórios de pequeno valor. O direito constitucional passou a ser usado como instrumento de comércio.
Agora já se prepara o terceiro calote. Por emenda apresentada pelo senador Renan Calheiros (PMDB-AL) e aprovada pelo Senado no simbólico dia 1º de abril, sob a velocidade da luz apagada, está-se introduzindo mais um artigo nas disposições transitórias que dará aos devedores de precatórios mais 15 anos de prazo. Façam as contas. Oito anos no primeiro calote, dez no segundo e 15 no terceiro.
A Constituição tem apenas 20 anos, mas os calotes nela introduzidos já somam 33. E, com a teratológica situação de quem, há 20 anos, recebeu títulos públicos para pagar os precatórios então existentes, teve que entrar em juízo para cobrar esses títulos e receberá novos precatórios com prazo de 15 anos. Ou aceita completar esses 35 anos ou terá que se submeter a situações mais vexatórias, pois, desta vez, alteram-se as disposições permanentes do artigo 100.
Estabelece-se, agora, um mercado para os títulos, que os credores venderão com deságio. Haverá o economista que o chamará de "unpaid debt trade". A maluquice maior institui leilão para os credores. Em vez de fila cronológica, pagar-se-á quem, no leilão, der maior desconto. O leilão também será limitado, pois dependerá de percentual da receita do devedor.Credor de precatório que não concordar com o leilão vai para o fim da fila. A emenda está na Câmara dos Deputados, que terá a oportunidade de salvar a testada do Congresso Nacional. O escândalo de criar um mercado do calote por meio de disposição constitucional é desmoralizar por completo (vale o cacófato) o poder constituinte residual do Congresso.
Transforma-o em poder desconstituinte dos mais elementares fundamentos da moralidade, em que pese a pressão dos prefeitos e governadores para o Congresso cometer mais este pecado mortal: usar o direito constitucional como instrumento de assalto. Por meio de disposições transitórias, institucionalizar uma vergonha permanente.
JOSÉ SAULO PEREIRA RAMOS , 79, é advogado. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney). É autor do livro "Código da Vida".
Fonte: Folha de São Paulo
PELA TERCEIRA vez, utiliza-se emenda constitucional para prorrogar pagamentos de precatórios, isto é, títulos que representam dívidas públicas resultantes de condenação judicial. O precatório, por si só, já é um calote. Só surge quando o poder público -União, Estados e municípios- deixa de pagar dívidas e obriga credores a recorrer ao Judiciário, que, como todos sabem, é o mais lento paraíso dos devedores em geral.
Essa escandalosa mentalidade brasileira de não pagar o que deve e esperar a condenação judicial foi consagrada pela Constituição, que assegurou a liquidação dos precatórios em ordem cronológica. A regra está no artigo 100.
Com a Constituição de 1988, a Assembleia Constituinte editou uma regra transitória que esticou um pouco mais o dever de pagar as dívidas objeto de condenação judicial. No Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, enfiou o artigo 33, que concedeu oito anos de prazo (oito prestações anuais) para o pagamento dos precatórios que estivessem pendentes na data da promulgação da Carta.
Concedeu-se mais: as entidades devedoras poderiam emitir títulos da dívida pública para pagar aqueles precatórios adiados. Foi uma farra. Alguns Estados e municípios emitiram letras muito acima dos valores dos precatórios e saíram por aí vendendo-as por dinheiro vivo aplicado por alguns investidores incautos, que acreditavam em títulos públicos.
A imoralidade resultou na CPI dos Precatórios, com escandalosos noticiários de TV, rádios e jornais. Alguns espertos governantes das entidades devedoras tiveram a ideia, diante do escândalo, de não pagar até os títulos públicos emitidos para pagamento dos precatórios.Alguns tribunais de justiça estaduais (a letra minúscula é de propósito) anularam os títulos e obrigaram os credores a propor ações ordinárias para cobrarem outra vez os respectivos créditos. Mais 20 anos.
Resumindo a ópera: alguns dos créditos de precatórios vencidos em 1988, adiados por oito anos e transformados em letras dos Tesouros devedores, não foram pagos até hoje.Doze anos depois, o Congresso editou nova emenda constitucional, enfiando, nas disposições transitórias, o artigo 78, que deu aos precatórios, então existentes na fila, mais dez anos para serem pagos em dez prestações suaves e anuais. Teve o cuidado de ressalvar, desse escandaloso benefício, os precatórios do artigo 33 e suas complementações.
Mas desferiu o segundo permissivo de calote por meio de reforma constitucional. Outra disposição constitucional transitória (artigo 86) excluiu os precatórios de pequeno valor. O direito constitucional passou a ser usado como instrumento de comércio.
Agora já se prepara o terceiro calote. Por emenda apresentada pelo senador Renan Calheiros (PMDB-AL) e aprovada pelo Senado no simbólico dia 1º de abril, sob a velocidade da luz apagada, está-se introduzindo mais um artigo nas disposições transitórias que dará aos devedores de precatórios mais 15 anos de prazo. Façam as contas. Oito anos no primeiro calote, dez no segundo e 15 no terceiro.
A Constituição tem apenas 20 anos, mas os calotes nela introduzidos já somam 33. E, com a teratológica situação de quem, há 20 anos, recebeu títulos públicos para pagar os precatórios então existentes, teve que entrar em juízo para cobrar esses títulos e receberá novos precatórios com prazo de 15 anos. Ou aceita completar esses 35 anos ou terá que se submeter a situações mais vexatórias, pois, desta vez, alteram-se as disposições permanentes do artigo 100.
Estabelece-se, agora, um mercado para os títulos, que os credores venderão com deságio. Haverá o economista que o chamará de "unpaid debt trade". A maluquice maior institui leilão para os credores. Em vez de fila cronológica, pagar-se-á quem, no leilão, der maior desconto. O leilão também será limitado, pois dependerá de percentual da receita do devedor.Credor de precatório que não concordar com o leilão vai para o fim da fila. A emenda está na Câmara dos Deputados, que terá a oportunidade de salvar a testada do Congresso Nacional. O escândalo de criar um mercado do calote por meio de disposição constitucional é desmoralizar por completo (vale o cacófato) o poder constituinte residual do Congresso.
Transforma-o em poder desconstituinte dos mais elementares fundamentos da moralidade, em que pese a pressão dos prefeitos e governadores para o Congresso cometer mais este pecado mortal: usar o direito constitucional como instrumento de assalto. Por meio de disposições transitórias, institucionalizar uma vergonha permanente.
JOSÉ SAULO PEREIRA RAMOS , 79, é advogado. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney). É autor do livro "Código da Vida".
Fonte: Folha de São Paulo
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