O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL vem ocupando espaço crescente na cena política brasileira. Não há mais novidade nessa constatação. Nesses últimos dias, porém, o tribunal foi destaque dos noticiários não tanto por ter decidido mais um dos casos fundamentais de sua agenda, mas pela discussão destemperada entre dois dos seus ministros, transmitida pela TV e disponível na internet.
Esse fato despertou uma saudável discussão sobre a conveniência da transmissão ao vivo dos julgamentos do tribunal. No último dia 2 de maio, neste mesmo espaço, duas posições se confrontaram.
De um lado, Carlos Velloso, ex-ministro do STF, defendeu que o televisionamento não seja ao vivo, mas editado conforme a relevância jurídica dos debates, de modo a manter o prestígio e a imagem de austeridade do tribunal.
De outro, o professor Gustavo Binenbojm argumentou que a iniciativa de restringir as transmissões evocaria a tradição superada das cortes como "seitas secretas" e levaria a uma perda de transparência possivelmente conquistada nos últimos anos, um exemplo original para o mundo.
Essa pode ser uma das raras oportunidades de estimular um bom debate público sobre os costumes decisórios do STF, aspecto mal percebido e geralmente ofuscado pelos polêmicos casos julgados diuturnamente pelo Supremo. Esse debate, no entanto, pode e deve ir além da discussão sobre a transmissão de seus julgamentos pela TV (ao vivo ou editados). Parece-nos que a questão central é outra: quais condições institucionais contribuem para que o tribunal alcance as melhores decisões possíveis?
A transmissão ao vivo é apenas uma entre muitas variáveis que determinam o modo pelo qual os ministros interagem e decidem. Não pode ser discutida de forma isolada.
Não há espaço aqui para examinar todas essas variáveis. Mesmo assim, como ponto de partida, vale a pena destacar um senso comum equivocado que parece se esconder por trás de muitas discussões sobre o STF.
Transmissões ao vivo e acórdãos disponíveis na internet, entre outras medidas, criaram um mito de transparência que precisa ser desconstruído. Ao contrário do que muitos tentam fazer crer, publicidade e transparência não têm nenhuma relação direta e necessária com a quantidade de julgamentos transmitidos pela TV.
Um tribunal constitucional transparente é aquele que decide com base em argumentos transparentes, que não disfarça dilemas morais por trás de retórica jurídica hermética, que não se faz surdo para os argumentos apresentados pela sociedade. Em suma, é aquele que expõe abertamente os fundamentos de suas decisões para que sejam escrutinados no debate público.
Contudo, se nos perguntarmos o que o STF pensa sobre várias das questões constitucionais relevantes, dificilmente alguém saberá responder com precisão, a despeito da quantidade de decisões disponíveis na internet e de julgamentos transmitidos pela televisão.
Com maior frequência, o que se pode identificar nesse emaranhado de decisões, disponíveis às vezes quase em tempo real, é tão-somente a soma de 11 decisões individuais, que não têm a menor pretensão de construir uma posição institucional consistente. Ainda que a dissidência interna possa ser saudável, ela não pode implicar uma falta de compromisso com uma posição institucional.
O debate sobre a forma de decisão no Supremo, sobre a ausência de uma voz institucional -em grande parte causada pela insistência em privilegiar as vozes individuais de seus ministros-, é o que mais importa. E, se consistência decisória é uma das maiores contribuições que um tribunal como o STF poderia dar a uma democracia, pode-se dizer que ele tem falhado nessa tarefa.
Embora a transmissão ao vivo de suas sessões não seja a causa dessa falta de unidade institucional, não é implausível especular que ela a intensifique. Se descobrirmos que é isso o que ocorre, há que pensar a sério em alternativas. Todos temos palpites a respeito, mas a resposta não é óbvia e exige mais estudo.
Saber se a discussão entre os ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa fere a imagem do tribunal não é tão relevante quanto o sintoma que esse episódio pode representar: alguns ministros começam a aproveitar o "momentum" televisivo para dirigir-se exclusivamente ao público externo, em vez de interagir entre si, no melhor espírito de uma deliberação colegiada. Tornam-se celebridades, o que é perigoso.
Talvez estejam produzindo, a título de uma sedutora transparência de superfície, um indesejável populismo judicial. O tribunal vende uma e entrega o outro. E não percebemos.
VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA , 35, é professor titular de direito constitucional da Faculdade de Direito da USP.
CONRADO HÜBNER MENDES , 32, é professor licenciado da Escola de Direito da FGV-SP e da Sociedade Brasileira de Direito Público.
Fonte: Folha de S. Paulo, seção Tendências e Debates, de 11/05/2009
Esse fato despertou uma saudável discussão sobre a conveniência da transmissão ao vivo dos julgamentos do tribunal. No último dia 2 de maio, neste mesmo espaço, duas posições se confrontaram.
De um lado, Carlos Velloso, ex-ministro do STF, defendeu que o televisionamento não seja ao vivo, mas editado conforme a relevância jurídica dos debates, de modo a manter o prestígio e a imagem de austeridade do tribunal.
De outro, o professor Gustavo Binenbojm argumentou que a iniciativa de restringir as transmissões evocaria a tradição superada das cortes como "seitas secretas" e levaria a uma perda de transparência possivelmente conquistada nos últimos anos, um exemplo original para o mundo.
Essa pode ser uma das raras oportunidades de estimular um bom debate público sobre os costumes decisórios do STF, aspecto mal percebido e geralmente ofuscado pelos polêmicos casos julgados diuturnamente pelo Supremo. Esse debate, no entanto, pode e deve ir além da discussão sobre a transmissão de seus julgamentos pela TV (ao vivo ou editados). Parece-nos que a questão central é outra: quais condições institucionais contribuem para que o tribunal alcance as melhores decisões possíveis?
A transmissão ao vivo é apenas uma entre muitas variáveis que determinam o modo pelo qual os ministros interagem e decidem. Não pode ser discutida de forma isolada.
Não há espaço aqui para examinar todas essas variáveis. Mesmo assim, como ponto de partida, vale a pena destacar um senso comum equivocado que parece se esconder por trás de muitas discussões sobre o STF.
Transmissões ao vivo e acórdãos disponíveis na internet, entre outras medidas, criaram um mito de transparência que precisa ser desconstruído. Ao contrário do que muitos tentam fazer crer, publicidade e transparência não têm nenhuma relação direta e necessária com a quantidade de julgamentos transmitidos pela TV.
Um tribunal constitucional transparente é aquele que decide com base em argumentos transparentes, que não disfarça dilemas morais por trás de retórica jurídica hermética, que não se faz surdo para os argumentos apresentados pela sociedade. Em suma, é aquele que expõe abertamente os fundamentos de suas decisões para que sejam escrutinados no debate público.
Contudo, se nos perguntarmos o que o STF pensa sobre várias das questões constitucionais relevantes, dificilmente alguém saberá responder com precisão, a despeito da quantidade de decisões disponíveis na internet e de julgamentos transmitidos pela televisão.
Com maior frequência, o que se pode identificar nesse emaranhado de decisões, disponíveis às vezes quase em tempo real, é tão-somente a soma de 11 decisões individuais, que não têm a menor pretensão de construir uma posição institucional consistente. Ainda que a dissidência interna possa ser saudável, ela não pode implicar uma falta de compromisso com uma posição institucional.
O debate sobre a forma de decisão no Supremo, sobre a ausência de uma voz institucional -em grande parte causada pela insistência em privilegiar as vozes individuais de seus ministros-, é o que mais importa. E, se consistência decisória é uma das maiores contribuições que um tribunal como o STF poderia dar a uma democracia, pode-se dizer que ele tem falhado nessa tarefa.
Embora a transmissão ao vivo de suas sessões não seja a causa dessa falta de unidade institucional, não é implausível especular que ela a intensifique. Se descobrirmos que é isso o que ocorre, há que pensar a sério em alternativas. Todos temos palpites a respeito, mas a resposta não é óbvia e exige mais estudo.
Saber se a discussão entre os ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa fere a imagem do tribunal não é tão relevante quanto o sintoma que esse episódio pode representar: alguns ministros começam a aproveitar o "momentum" televisivo para dirigir-se exclusivamente ao público externo, em vez de interagir entre si, no melhor espírito de uma deliberação colegiada. Tornam-se celebridades, o que é perigoso.
Talvez estejam produzindo, a título de uma sedutora transparência de superfície, um indesejável populismo judicial. O tribunal vende uma e entrega o outro. E não percebemos.
VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA , 35, é professor titular de direito constitucional da Faculdade de Direito da USP.
CONRADO HÜBNER MENDES , 32, é professor licenciado da Escola de Direito da FGV-SP e da Sociedade Brasileira de Direito Público.
Fonte: Folha de S. Paulo, seção Tendências e Debates, de 11/05/2009
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