Com apenas 30 anos de idade, a Procuradora do Distrito Federal Roberta Fragoso Kaufmann tem uma carreira privilegiada. Atualmente ela se dedica à Procuradoria-Geral do Distrito Federal, mas sempre esteve ao lado de nomes que ocupam lugar de destaque na cena jurídica do País.
Roberta foi assessora do ex-presidente do Supremo Tribunal Federal ministro Marco Aurélio Mello, para quem fazia pesquisas e análise de processos. “O ministro Marco Aurélio foi meu mentor intelectual”, diz. Há oito anos, escolheu um assunto espinhoso para tema de seu mestrado em direito: as cotas para negros nas universidades. E teve como orientador outro jurista de peso: o atual presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, que também assinou o prefácio do seu livro Ações afirmativas à brasileira – necessidade ou mito.
Na tese, Roberta traça um paralelo entre o sistema de cotas implantado nos Estados Unidos e o sistema que foi adotado no Brasil. Do alto de sua especialização, a procuradora do DF dá um conselho ao governo Lula: já é tempo de abandonar o sistema de cotas para negros e substituí-lo por cotas para pobres. Por quê? “A questão racial no Brasil não pode servir como parede, dividindo as raças”, explica Roberta. “O governo quer desunir o que está unido e importa um problema que não é nosso, que é o problema da segregação racial.”
Roberta está convicta de que esse caminho só contribui para aprofundar o problema de consciência de raça, baixar a auto-estima dos estudantes negros e retirar o estímulo do princípio do mérito nos vestibulares. Certa de que as cotas não fazem bem ao Brasil, Roberta cravou sua assinatura na lista dos 113 intelectuais contrários à ação afirmativa, que será julgada pelo STF.
Loira, olhos levemente esverdeados, ela garante que herdou uma parcela de sangue negro dos antepassados pernambucanos. Roberta está grávida de oito meses. Será uma menina e o nome está escolhido: Gabriela. “Será Gabriela Cravo e Canela”, brinca, referindo-se ao símbolo maior da sensualidade da obra de Jorge Amado. Sensualidade com berço no sincretismo racial.
ISTOÉ – Qual é sua opinião sobre o sistema de cotas?
Roberta Fragoso Kaufmann – Essas cotas, da maneira que vêm sendo adotadas no Brasil, são inconstitucionais. Estão aplicando aqui tão-somente a importação de um modelo pensado para a realidade americana. Nesse sentido, observo certo deslumbramento dos cientistas nacionais com respeito ao modelo dos Estados Unidos.
ISTOÉ – Nos EUA, o modelo funcionou bem?
Roberta – Não. Lá, as cotas nunca foram consideradas constitucionais em termos de educação. Mesmo nos EUA, hoje se abandona esse sistema porque ele gerou ódio racial maior do que efetivamente integrou o negro na sociedade. Em julho, num caso envolvendo uma escola de Seattle, a Suprema Corte reviu as ações afirmativas e decidiu que a raça não pode ser elemento de distinção no sistema educacional.
ISTOÉ – As diferenças históricas entre Brasil e EUA não foram levadas em consideração?
Roberta – Não foram. O que está acontecendo é a cópia de um modelo que foi pensado para os EUA. Estão querendo implementar esse modelo de qualquer forma aqui no Brasil. Lá, quando houve a abolição da escravatura, havia pouca interação entre as raças. Apenas 12% dos negros nos EUA eram livres nos anos imediatamente anteriores à abolição. No Brasil, 90% dos negros já eram livres. Consegui localizar uma ordem de 1731, emanada de dom João V, em que ele dava a um negro o cargo de procurador-geral da Coroa, dizendo que ser negro não era impedimento para assumir função pública.
ISTOÉ – Existe sistema de cotas em muitos países?
Roberta – Não para negros. Na Bélgica, há cotas para imigrantes. Na Índia, para a casta dos Dalits. No Canadá, para descendentes de esquimós. Os EUA foram o país pioneiro em cotas raciais para negros. Nos EUA, quando houve a abolição, foi precedida da mais violenta guerra de que se teve notícia lá, com 600 mil mortos. A sociedade que emergiu foi totalmente polarizada entre brancos e negros. Por isso é que após a abolição da escravatura houve o surgimento da Ku Klux Klan, dos conselhos de cidadãos brancos. Houve a instituição de uma segregação oficial como política de Estado.
ISTOÉ – A sra. acha que seria melhor criar cotas para pobres?
Roberta – Exatamente. O recorte no Brasil tem que ser social. Existem outras políticas sociais que podem ser desenvolvidas para a inserção do negro, como uma política de bolsas de estudo para os que conseguirem passar no vestibular, mas não têm condições financeiras.
ISTOÉ – Em sua visão, a cota para negros no Brasil seria um preconceito contra os negros?
Roberta – Não só um preconceito contra os negros, mas seria também uma medida não adequada para a resolução dos nossos problemas. A medida mais adequada no nosso caso é esquecer as cotas e partirmos para uma política social que integre os negros carentes à sociedade.
ISTOÉ – Como isso poderia ser feito?
Roberta – Ações afirmativas como gênero, mas não por meio de cotas. Ações afirmativas como bolsas de estudo para negros carentes, cursinhos pré-vestibulares para negros carentes. As cotas ofendem o princípio da igualdade, porque elas geram a chamada discriminação reversa, daqueles que não deram causa ao problema, por exemplo, os brancos pobres que foram alijados do vestibular.
ISTOÉ – Um dos argumentos dos defensores das cotas é que o ensino público perdeu qualidade e o negro pobre não tem como ascender.
Roberta – Se você institui cotas na universidade, será que o negro que está sendo beneficiado é, de fato, o negro que mais precisa de um benefício estatal? Ou é o negro que conseguiu terminar o primeiro grau e o segundo grau? As cotas estão favorecendo uma classe média negra que não é necessariamente quem mais precisa do apoio estatal. O negro pobre é excluído no primário.
ISTOÉ – Então, não se faz necessária uma política específica para promover os negros?
Roberta – Temos um problema crucial que não existe nos EUA: defina quem é negro no Brasil. Nos EUA o sistema é chamado bi-racial. Só existem a raça negra e a branca. Não existem as categorias dos morenos, dos mulatos, dos pardos. Se você tiver uma gota de sangue negro, você é considerado negro. Por isso, o termo “afro-descendente” é uma importação indevida. No Brasil, não é uma questão de descendência. Se fizermos uma análise de ascendência para saber quem é negro, quem de nós não é negro?
ISTOÉ – A sra. tem sangue negro?
Roberta – Com certeza, tenho. Sou do Recife.
ISTOÉ – A sra. é loira de olhos claros.
Roberta – Mas minha família é de Pernambuco e tem um monte de gente morena. Veja o exemplo do Neguinho da Beija-Flor. Ele foi fazer exame de DNA e detectou que 70% do DNA dele é europeu. Tinha que ser Branquinho da Beija-Flor. Com a Daiane dos Santos aconteceu a mesma coisa. Quem de nós não tem os pés, as mãos e o coração na África?
ISTOÉ – O ministro da Igualdade Racial, Edson Santos, diz que desde a abolição não houve política de inclusão tão intensa.
Roberta – Na verdade, não havia política nenhuma, nem para negro, nem para pobre. Os pobres também não tinham política de integração.
ISTOÉ – Os grupos desiguais não devem ser tratados de forma desigual para se chegar ao equilíbrio?
Roberta – Com certeza, desde que a medida criada para igualar esses desiguais seja a mais adequada para o nosso problema. As cotas são inconstitucionais porque ofendem a igualdade. No Brasil, nosso sistema é multirracial. Nós temos as categorias branca, preta, parda, indígena e amarela.
ISTOÉ – A autodeclaração é adequada para o acesso a cotas?
Roberta – Não há outro mecanismo. O Censo do IBGE é que impõe cinco categorias. O Programa Nacional de Amostragem Domiciliar de 1976 deixou livre para que o entrevistado definisse a que raça pertencia. O resultado disso foram impressionantes 135 cores diferentes.
ISTOÉ – Se a sra. fosse o presidente Lula, acabaria com as cotas na hora?
Roberta – Acabaria. Por que existe tanta legislação de cota? Essa é uma legislação simbólica, a custo zero para o Estado. Ela passa a imagem de que o governo está preocupado em resolver o problema, enquanto, na prática, ele não atinge a verdadeira raiz do problema, que é a educação de base, que é péssima, a educação pública, de pouquíssima qualidade, e faz com que os pobres fiquem alheios a esse debate de cotas.
ISTOÉ – Esse sistema divide vagas que já existem?
ISTOÉ – Esse sistema divide vagas que já existem?
Roberta – Sim. Não vai criar mais vagas; não vai ampliar. E, o que é pior, os cotistas conseguem entrar, mas os pobres não vão conseguir permanecer. As pessoas que precisam trabalhar não podem mais ficar na universidade pública. Seria mais eficaz promover uma política de bolsas estatais para aqueles que conseguiram passar pelo vestibular do que apenas instituir cotas e lavar as mãos.
ISTOÉ – Em Brasília, a UnB enquadrou um gêmeo como negro e o outro como branco.
Roberta – Esse ponto é importantíssimo. Com esse negócio de cotas, nós não só estamos retrocedendo a uma política inconstitucional como estamos retrocedendo na forma como nós nos classificamos. Olha o absurdo da UnB. Instituiu uma comissão para determinar quem é branco e quem é negro com base apenas no olhar. Uma senhora lá da UnB olha para a pessoa e diz: “você é branco”, “você é negro”. Houve um caso dos gêmeos e também o caso de um pai e uma filha. O pai era um negro, casado com uma branca, e teve uma filha parda. A filha foi considerada negra e o pai, não. É o cúmulo do racismo.
ISTOÉ – O que pode ser feito para que essa política não seja tão subjetiva?
Roberta – É preciso ignorar a “racialização”. Vamos tratar de políticas sociais, vamos cuidar dos nossos carentes. Estes, sim, precisam de integração. Necessariamente, quando você fizer uma política social, você estará ajudando os negros, porque 70% dos pobres são negros. O governo Lula está disfarçando o debate e importando um problema que não é nosso. Esse problema racista foi muito presente nos EUA, toda essa discussão de ações afirmativas esteve presente lá.
ISTOÉ – Nas pesquisas que fez, o que encontrou de mais falho no sistema de cotas?
Roberta – A ignorância acerca dos primórdios dessa política. Aqui todo mundo discute esse tema como se tivesse surgido de um modelo de Estado social, para implementar o princípio da igualdade. Quando nós aprofundamos nosso estudo, percebemos que esse argumento não é de todo verdadeiro. Os EUA são talvez o maior exemplo de Estado liberal. Não é exemplo de Estado social. Por que então essa questão de ações afirmativas se originou nos EUA, se eles não estão preocupados com o modelo do Estado social?
ISTOÉ – Por causa da diferença étnica?
Roberta – Não só isso. O primeiro presidente que implementou uma ação afirmativa para integrar os negros foi um republicano conservador e que em campanha política havia se declarado contrário às cotas e a qualquer medida que levasse em conta a raça. Foi Richard Nixon, presidente de 1969 a 1974. O contexto era da iminência de uma guerra civil.
ISTOÉ – A política foi implantada em contexto bem diferente do que se vê no Brasil?
Roberta – Num contexto específico de guerra social. A questão racial foi capa da revista Time por três semanas consecutivas. Lançaram-se livros anunciando o Armagedon. O conflito racial nos EUA não teve precedente, exceto a Guerra Civil de 1860. Ou o Nixon fazia alguma coisa para solucionar aquilo ou então teria de sofrer o ônus de eclodir guerra civil em seu governo.
ISTOÉ – Foi uma política emergencial?
Roberta – E casuística. Nos EUA nunca houve teorização, pelos movimentos negros, de ações afirmativas. Martin Luther King era contra essas políticas. Ele sempre disse: “Eu não tenho como justificar que negros ricos tenham acesso a benefícios estatais diante de tantos brancos pobres.”
ISTOÉ – A sra. acha que o STF vai derrubar as cotas?
Roberta – Tenho receio de que o STF queira fazer uma “jurisprudência simbólica”, com vistas à imagem que a corte vai passar para a população, e não com o que deveria ser. Meu receio é de que o STF tente dar uma aparência de tribunal preocupado com o politicamente correto.
Fonte: Revista Isto é
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