Maria Paula Dallari Bucci*
Nesse período de profundas mudanças da vida brasileira, cabe refletir sobre os desafios que se impõem à Advocacia Pública. A reconstrução do Estado reclama a recuperação da centralidade do direito na estruturação e funcionamento das instituições públicas, como ocorreu na origem do moderno aparelho de Estado, quando se consagrou o modelo do exercício impessoal da autoridade.
Depois disso, muitas vezes associado à linguagem que dava voz ao poder autoritário, o direito público foi perdendo o lugar de referência da organização estatal. A noção de burocracia deixou de ser associada à idéia de corpo profissional a serviço da execução da vontade comum e passou a conotar um desvio, uma corporação com vida própria desgarrada de seu fundamento de criação. Os corpos jurídicos da Administração Pública passaram a ser vistos muitas vezes como os órgãos que davam corpo a essa posição autoritária, imperativa, vertical, impermeável ao contraditório e ao diálogo do poder com os seus titulares legítimos.
Em reação, o direito público passou a dar expressão aos cidadãos em face da autoridade e evoluiu para uma postura limitadora, freqüentemente paralisante da ação governamental. Nesse embate, a busca de soluções para o funcionamento dos organismos estatais reforçou discursos de recusa dos caminhos da legalidade, em favor de outros modelos, descomprometidos com os fatores históricos que levaram à conformação jurídica da Administração Pública tal como posta no art. 37 da Constituição de 1988 .
A recuperação do papel da Administração Pública num Estado democrático de direito depende de uma mudança cultural. A Advocacia Pública, como corpo permanente, especializado e composto com base no mérito, tem uma condição privilegiada para contribuir com a formação dessa nova cultura de legalidade democrática, auxiliando na criação de vias jurídicas para o processamento das demandas e conflitos sociais no âmbito do Poder Público. Para estar à altura dessa função, ela deve renovar constantemente sua própria postura e para isso se propõem as idéias-chave adiante sintetizadas.
1) Empatia. Compreender as motivações que inspiram o gestor público, as circunstâncias do problema trazido e as vantagens das soluções cogitadas. Desarmar-se.
Comprometer-se com a causa pública. Contribuir para a recuperação do sentido da expressão "interesse público", não mais carregada de retórica autoritária, mas significando o autêntico encontro de aspirações da pluralidade dos agrupamentos sociais.
2) Iniciativa. Evitar o comodismo. Buscar os meios e procedimentos jurídicos mais adequados para sua ação. Recusar o conforto das negativas prontas, duvidar delas e esgotar as possibilidades de atuação dentro da legalidade antes de negar um caminho proposto. Orientar. Apresentar a legislação e explicitar seus fundamentos, compartilhando com o gestor as razões que levam uma conduta a ser aceitável ou não perante a legislação.
3) Criatividade. Quando não existirem alternativas jurídicas sedimentadas, utilizar seu potencial criativo para desenvolver soluções adequadas, dentro dos marcos legais. Não temer construções inovadoras. Fomentar e incentivar a boa-fé e a lealdade às instituições.
4) Consistência. Escapar aos equívocos da falsa "flexibilização". Conceber soluções juridicamente estruturadas, de modo a resistirem à passagem do tempo e ao crivo dos órgãos de controle, especialmente o Poder Judiciário. Lembrar que esses exercem suas atividades com fundamento na mesma Constituição que autoriza o gestor público a atuar.
5) Rigor. Esgotados os passos anteriores, se firmada a convicção quanto à inviabilidade da conduta nos termos da lei, utilizar seu poder de persuasão para demover o gestor público da intenção de produzi-la, com fundamento na ordem jurídica democrática.
No limite, apontar a ilegalidade, com os meios disponíveis. O cliente da Advocacia Pública é a coletividade, sintetizada no Poder Público, e não a pessoa do governante ou gestor.
6) Autoridade Moral. Destacar-se pela retidão de conduta. Evitar os conflitos de interesses. Escapar ao equívoco do corporativismo. Evitar as comparações com outras categorias jurídicas. É princípio constitucional a posição isonômica de advogados, juízes ou promotores, sendo insustentável, por injusta, argumentação que pretenda defender a superioridade de qualquer dessas classes em relação a outros profissionais que exercem função pública.
7) Autoridade Técnica. Buscar autoridade na competência técnica e na habilidade do desempenho profissional e não na posição corporativa. Dominar as referências do conhecimento jurídico estabelecido em sua área de atuação. Conferir segurança e confiabilidade às soluções construídas, estabelecendo as conexões com essas referências.
8) Humildade. Saber ouvir, reconhecer os limites do seu próprio conhecimento, identificar o que não se sabe e que é necessário aprofundar. Estar aberto ao diálogo. Superar o insulamento característico da formação jurídica brasileira. Aprender com a vivência dos outros e com "o direito achado na rua".
9) Estudo. Estudar regularmente. Conhecer a cultura jurídica formal, consolidando a em trabalhos de reflexão que levam a títulos e diplomas. Não sucumbir à tentação da repetição acrítica. Ir além, cultivando uma atitude de curiosidade permanente e dúvida diante dos problemas. Pesquisar a legislação, a jurisprudência, os trabalhos acadêmicos. Procurar experiências de outros países, cada vez mais acessíveis, na era da Internet.
10) Equilíbrio. Buscar a harmonia entre a justiça e a ordem institucional formal.Contemplar a justiça material, mas também a dimensão procedimental, operativa, sem a qual o direito é letra morta. Trabalhar para "conciliar poder eficiente com direito legitimador".3
1 Uma primeira versão desta idéia foi apresentada originalmente em Recife, em 20.8.2008, na comemoração dos 18 anos da Procuradoria Geral do Estado de Pernambuco. Ao reduzi-la a escrito, leituras amigas contribuíram para sua forma final. Entre essas, a de meu pai, Dalmo de Abreu Dallari, que me mostrou diversos outros “decálogos” e “mandamentos do advogado”, como os de Santo Ivo, Eduardo Couture e Ruy Barbosa (cf. Mandamentos do Advogado e do Juiz, B.Calheiros Bonfim, Rio de Janeiro, Ed. Destaque, 2000, 2a. ed.). Este decálogo é uma pequena homenagem a quem me ensinou a paixão pelo direito como instrumento de realização da justiça e do bem social.
2 Mestre e Doutora em Direito pela USP. Professora da Direito-GV, em São Paulo. Consultora Jurídica do Ministério da Educação. Desempenha atividades na Advocacia Pública desde 1992.
3 Marcelo NEVES. Entre Têmis e Leviatã: uma Relação Difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. XVIII.
*Advogada, filha de Dalmo de Abreu Dallari
Nenhum comentário:
Postar um comentário