Cesar Antonio Alves Cordaro - Procurador do Município de São Paulo e Ex-Presidente da Associação dos Procuradores do Município de São Paulo
1. A Constituição de 1988, que completou seu décimo ano de existência, representou expressivo avanço para a Advocacia em geral e para a Advocacia Pública em particular.
Através de seu art. 133, o legislador constituinte reconheceu a Advocacia como atividade essencial à administração da Justiça - circunstância já anteriormente consagrada na legislação infraconstitucional (art. 68 da Lei nº 4.215, de 1963) -, outorgando o "status" de inviolabilidade, por atos e manifestações, aos respectivos profissionais.
A Advocacia Pública, notadamente, foi contemplada com a criação da Advocacia-Geral da União e com a institucionalização, a nível nacional, da carreira de Procurador do Estado e do Distrito Federal. A Constituição Paulista de 1967, alterada pela Emenda nº 2, de 1969, já institucionalizara, no plano estadual, a Procuradoria Geral do Estado.
Assim, com o advento da Constituição de 1988, a representação judicial e extrajudicial e a consultoria jurídica da União, dos Estados e do Distrito Federal, foi reservada aos advogados públicos.
Todavia, a Advocacia Pública exercida pelos Procuradores dos Municípios não foi contemplada com o reconhecimento constitucional, repetindo, aqui, o legislador, o mesmo equívoco daqueles que elaboraram as Constituições anteriores, consistente em tratar o Município como um ente político de categoria inferior em relação à União, ao Estado e ao Distrito Federal.
Afirmou-se que tal exclusão tinha sólidas razões, pois a expressiva quantidade de Municípios existentes no Brasil e a diversidade de situações econômicas e administrativas não recomendava o "engessamento" dessas unidades, numa situação que trataria igualmente circunstância completamente diferenciadas, impondo encargos - como a obrigatoriedade de estruturação de uma Procuradoria Geral - às pequenas localidades, jejunas de recursos e, muitas vezes, sem a real necessidade de serviço jurídico estruturado nas proporções de uma Procuradoria Geral.
O argumento contém meia-verdade e, nessa condição, é falso.
A verdade está no reconhecimento das diferentes realidades econômicas e administrativas de cada Município: realmente, no Brasil, encontram-se situações com disparidades assustadoras, onde convivem desde Municípios com população que ultrapassa os 10 milhões de habitantes (São Paulo), até outros que não chegam a 10 mil (Rio Acima - Região Metropolitana de Belo Horizonte). Há, ainda, Municípios com orçamentos astronômicos - novamente São Paulo serve de exemplo, com o 3º ou 4º maior orçamento do país - e outros - a grande maioria - cuja carência de recursos impede a realização dos serviços básicos, necessários ao bem-estar da comunidade.
O equívoco está na conclusão que se extrai da constatação acima, de que a Constituição Federal não poderia disciplinar essa questão.
A institucionalização da Advocacia Pública nos Municípios poderia ser fixada pela Consituição Federal, que excluiria os de pequeno porte, através da fixação de um patamar, baseado no número de habiutantes.
Mas, resolvida esta questão, caberia a pergunta: qual a importância da institucionalização da Advocacia Pública a nível municipal, nos moldes aqui aventados ? A representação judicial do Município e a atividade de consultoria só devem ser feitas por Advogados Públicos ?
A resposta a essas indagações envolve a natureza da atividade do Estado e a própria essência da Advocacia Pública.
2. O Município, no ordenamento constitucional brasileiro, foi expressamente reconhecido - a partir de 1988 - como entidade federada, em posição de igualdade, ao lado da União e do Estado.
Como entidade estatal, o Município detém personalidade jurídica de direito público interno, estando investido de autonomia político-administrativa, valendo destacar a que a "autonomia política" é uma peculiaridade do município brasileiro, porquanto nas demais Federações "os municípios são circunscrições territoriais meramente administrativas", conforme observa HELY LOPES MEIRELLES.
No exercício da função estatal, como pessoa administrativa, o Município pratica atos administrativos de império, atos de autoridade, atos de força, específicos do poder público, que submete os particulares, cuja eficácia repousa no interesse coletivo que se superpõe aos interesses particulares" (Cf. HELY LOPES MEIRELLES).
Como pessoa administrativa, ainda, o Município está jungido aos princípios básicos da administração pública, que, segundo a classificação do já citado HELY LOPES MEIRELLES são os seguintes: legalidade, moralidade, finalidade e publicidade.
CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, ao discorrer sobre esses princípios, aos quais denomina como princípios do regime jurídico-administrativo, destaca dois básicos dos quais decorreriam os demais, incluídos na classificação acima: 1) Supremacia do interesse público sobre o privado e 2) Indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos. Ao lado desse segundo princípio, concorrem outros que informam o regime administrativo: a) princípio da legalidade (do qual decorrem os princípios da finalidade, da razoabilidade, da proporcionalidade, da motivação e da responsabilidade do Estado), b) princípio da obrigatoriedade do desempenho da atividade pública (princípio da continuidade do serviço público), c) princípio do controle administrativo, d) princípio da isonomia, e) princípio da inalienabilidade dos direitos concernentes a interesses públicos, f) princípio do controle jurisdicional dos atos administrativos.
Submetidos a esses rígidos princípios, os agentes políticos do Município, como de resto de todos os demais entes federados, devem observar rigorosamente o princípio da legalidade que baliza com traços nítidos os limites de sua conduta. Conforme assinala HELY LOPES MEIRELLES, "a eficácia de toda atividade administrativa está condicionada ao atendimento da lei", ressaltando, mais adiante, que se para o particular a lei significa "pode fazer assim", para o administrador público significa "deve fazer assim".
Não se pode admitir, portanto, que a atuação do administrador público seja desprovida do necessário assessoramento técnico, através de um órgão especializado, estruturado através de cargos acessíveis mediante concurso de provas e títulos, cujos ocupantes tenham a garantia da estabilidade.
Esse órgão especializado é a Procuradoria Geral e deve ser estruturada nos mesmos moldes que a Advocacia Geral da União e as Procuradorias Gerais dos Estados.
A carreira de Procurador do Município deverá ser disciplinada através de Lei Orgânica, onde serão previstas as prerrogativas, as atribuições e as responsabilidades de seus membros, de modo diferenciado daquele existente no estatuto do funcionalismo, visto que se trata de carreira com especificidades próprias. Deverá ser garantido aos seus integrantes a possibilidade do constante aperfeiçoamento e atualização técnica, de forma a garantir a eficácia das orientações traçadas, bem assim, a defesa dos interesses do Município em juízo.
É, enfim, a Advocacia Pública, nos moldes como já institucionalizada, a melhor garantia da orientação técnica segura, no exercício da tarefa de administrar o Município. Ela supera, nesse ponto, a Advocacia de Clientela, ou Advocacia Privada, na medida em que é constituída de profissionais cuja formação e cultura jurídicas será passível de avaliação através de concurso público.
3. JOSAPHAT MARINHO, ao discorrer sobre a abrangência e a peculiaridade da Advocacia Pública, sustenta, com singular propriedade, que "a especificidade da advocacia pública reside na índole dos interesses e direitos defendidos, e não, propriamente, na categoria do órgão representado, ou assistido. A legitimidade da pretensão há de estar relacionada com aspecto ou parcela de interesse público, direto ou indireto, numa larga escala de situações variáveis".
Dessa afirmação se extrai que a peculiaridade da Advocacia Pública, em confronto com a Advocacia Particular, reside menos na circunstância daquela se apresentar como representante judicial dos órgãos públicos, do que na qualidade do interesse representado que "é pressuposto de uma ordem social estável, em que todos e cada um possam sentir-se garantidos e resguardados" (Cf. CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO).
Esta questão, relacionada à qualificação do "interesse público", impõe uma distinção que vai contribuir para o deslinde da indagação exposta acima, demonstrando o grau de especialização técnica que propicia o exercício da Advocacia Pública, nos moldes em que foi estruturada nas esferas federal e estaduais.
Ao debater o conceito de interesse público, RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO, depois de confrontá-lo com os conceitos de interesse individual e coletivo, anota que o termo "público" contém uma diversidade de significados e, embora esteja relacionado à idéia de Estado, apresenta semelhanças com as palavras "geral" e "social", indicando, em conclusão, que nem sempre o interesse estatal estará afinado com o interesse social: v. g., realização de obra pública excessivamente onerosa ou não prioritária.
O Procurador do Município, assim como, de resto, qualquer advogado público, no exercício de seu munus, vai, constantemente, defrontar-se com situações em que terá de cotejar o interesse do administrador com o interesse público, procurando harmonizar o primeiro ao segundo, notadamente nas atividades de consultoria. Para tanto, não poderá ter receio de manifestar livremente sua convicção técnica. Daí, a necessidade da advocacia pública revestir-se de garantias outras que necessariamente vão diferenciá-la da advocacia particular.
Não se trata, portanto, unicamente da postulação ou da solução de uma controvérsia em favor de um interesse individualizado, cujo efeito se restringe à órbita exclusiva do seu titular e da parte adversa, mas, ao contrário, trata-se de um direito que, ao se defrontar com outro, abrange e repercute no interesse de toda a coletividade.
Tratando com o interesse público, o Advogado Público do Município referencia sua atuação no princípio da legalidade, que, como assinalado, é a vértebra que sustenta a atividade administrativa.
JOSÉ AFONSO DA SILVA assinalou, com relação a esse tema, que o "princípio da legalidade é a nota essencial do Estado de Direito", ressaltando, mais adiante, que a "atuação municipal há que realizar-se segundo o império da lei, e sua atividade não terá eficácia se não se desenvolver de acordo com os condicionamentos da lei". Conclui, extraindo da noção de "finalidade" (fim legal - fim submetido à lei), a sua estreita vinculação com o interesse público.
Nessa linha de considerações, pode-se concluir que a especial atenção ao interesse público e a estrita obediência ao princípio da legalidade exigem que o advogado público do Município, nos mesmos moldes que seus congêneres do Estado e da União, tenha assegurado o exercício independente de sua função, através de uma carreira regularmente estruturada, acessível mediante concurso público, revestida de estabilidade, evitando o comprometimento de sua autonomia técnica e o aviltamento de suas prerrogativas profissionais.
Essas garantias não devem ser entendidas como privilégios corporativistas, mas, ao contrário, como elementos fiadores da necessária autonomia, no exercício consciente da profissão. Afinal, a garantia do livre exercício profissional, sem qualquer receio de desagradar a este ou àquele, é a própria garantia do agente político, de obter uma orientação segura, com a observância dos princípios que regem a atividade administrativa.
A resposta das questões acima formuladas, tanto sob a ótica da natureza da função estatal, como, também, das características que ilustram a Advocacia Pública, autorizam, sem qualquer receio de erro, a conclusão de que a institucionalização do órgão representa, mais que um avanço, a garantia do respeito à ordem jurídica, elemento fundamental do Estado Democrático de Direito. O exercício das tarefas de consultoria e representação do Município devem ficar restritas ao Advogado Público (Procurador do Município), em razão das peculiaridades que revestem essa atividade, conforme acima esplanado.
E, enfim, a Advocacia Pública mais um elemento de vocação democrática, a garantir o exercício transparente da tarefa de administrar o Município.
Por isso, nessa oportunidade em que se debate a reforma administrativa, seria de fundamental importância que se inserisse na regra do art. 132 da Constituição, a Procuradoria dos Municípios, cujo critério de obrigatoriedade estaria vinculado ao número de habitantes.
Um comentário:
Concordo plenamente... em vários municípios a defesa judicial é realizada por secretariados de "assuntos jurídicos", o que, a meu ver, fere o sistema constitucional, visto que não permite o ingresso de pessoas comprovadamente gabaritadas através de concurso público na defesa judicial do Município. Atente-se que os secretariados são de livre nomeação do chefe do executivo municipal. Isso me revolta.
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